A cidade acha que conhece o Beiru/Tancredo Neves. Acha. Mas opinião vista de longe é sempre superficial. A história que importa caminha por dentro, beco a beco, sem alarde. Ontem fomos lá, olhos abertos e pés no chão. A Fundação Paulo Cavalcanti e o Movimento Via Cidadã entraram para ver o que muita gente só comenta: o trabalho de Jean Santos, pedagogo, teimoso do bem, homem que insiste onde tantos já viraram o rosto.
Ali, onde parte de Salvador só enxerga carência, ele cultiva pertencimento. A Catequese Musical, nas salas simples e acolhedoras da Paróquia do Espírito Santo, é seu primeiro templo. Violões, teclas, flautas alinhadas, um baixo firme, percussão que conversa com o corpo e um piano que exige paciência. Criança pequena, jovem adulto, católico, evangélico, filho do axé. Aqui ninguém pede testemunho de fé, nem etiqueta de classe. Entra quem chega. Cresce quem fica.
Jean aprendeu ainda adolescente que música pode salvar. Lá atrás, um projeto social botou um instrumento nas mãos dele. Ele prometeu retribuir. Não fez discurso; fez rotina. Desde 2005, sem plateia, sem marketing, sem pose.
Hoje, ele levanta, tijolo a tijolo, o que chama de corredor cultural: salas, oficinas, anfiteatro ainda no cimento, festival de pipoca, cinema comunitário, pedal de domingo com o Anjos Bike. Bicicleta ali não é apenas lazer: é anúncio de movimento. Em bairros onde o mundo chega sempre pela porta do limite, aprender a avançar é ato de revolução silenciosa.
O resultado? Respeito conquistado, não imposto. Portas que se abrem, abraços sinceros, olhares que reconhecem quem não abandonou o território. Jean não se vende como herói. Só não vai embora. Já tocou o Vaticano, a convite do Papa Francisco. Não voltou com medalha, voltou com mais certeza. Hoje estima ter atravessado a vida de quinze mil pessoas, alcançando também Simões Filho e Aratuípe. Não é expansão. É responsabilidade que transborda.
No meio da caminhada, Alexia, 12 anos, guiou cada passo. Firmeza no olhar, postura de quem sabe que cuidar também é poder. Prova de que o projeto não produz alunos: cultiva cidadãos em ação.
Foi também um momento de encontro de mundos que se reconhecem. A Economia de Comunhão abriu as portas para esse intercâmbio com a Via Cidadã. Cris Santos, Antonio Nykiel e Vitor Anunciação caminharam com Jean, Alexia e a comunidade. Visitamos a Paróquia Espírito Santo, a Casa dos Sonhos da Associação Mosaico de Amor, a Arena dos Sonhos que nasce entre poeira e esperança. E viram a rua pulsando, onde a política do cotidiano acontece sem plenário e sem palanque.
Economia de Comunhão não fala de PIB; fala de gente. E ontem ficou claro: quando se coloca o ser humano no centro, a vida responde. O encontro fortaleceu vínculos que se repetem e firmam raízes.
E um ponto importante: nossa ida não foi passeio meramente institucional. A Via Cidadã está fincando presença real no território e estruturando ali um Observatório de Educação. Não como um laboratório frio ou para compor relatórios de gaveta. Mas para estar dentro, ver, ouvir, aprender e transformar juntos. Um espaço para registrar, partilhar e fortalecer o que já floresce: o cuidado consigo, com o outro e com a comunidade.
Inspirados pelo livro Inteligência Cidadã, seguimos provocados: o que ainda nos falta para transformar de verdade? Menos discurso polido, mais atitude transformadora. Chegamos, ouvimos, somamos. E quando alguém chega e soma, vira família antes mesmo de perceber.
Estamos, juntos, levantando uma Casa da Transformação e da Participação. Tijolo e ideia. Ação e cuidado. Dinheiro dividido com propósito. Negócios que sustentam dignidade. Comunhão que não é sermão; é prática.
Quando o país finalmente cansar das fórmulas mágicas e dos especialistas de rede social, talvez descubra que a resposta estava aqui o tempo todo: na sala simples, na flauta afinada à coragem, no pedal de domingo, no corredor de cimento e sonho.
Porque onde disseram que nada floresce, alguém decidiu cultivar gente. E quando alguém insiste assim, até o futuro se sente na obrigação de aparecer.